Obrigada a todos por terem tornado este cadavre exquis virtual num desafio tão divertido!
A vossa dedicação, empenho e interesse superou todas as minhas expectativas... Um grande bem haja a todos e stay tuned!
Cá vai o (tão esperado) resultado:
Leio pela primeira vez
Valter Hugo Mãe, que fala em “assumir a tristeza para reclamar a
esperança” e penso na enorme simplicidade, na inexorável verdade
e no poder esmagador desta frase... E compreendo como esta é uma
ideia tão lúcida numa época e sociedade que rejeitam veementemente
a tristeza através dos mais diversos subterfúgios: da literatura de
“auto-ajuda” eticamente duvidosa à dormência dos
antidepressivos. Viver a tristeza é fundamental para investir no
futuro a que cada um tem direito.
O
futuro a que todos temos direito está escondido nos locais mais
improváveis, como, aliás, os melhores segredos. por mais difíceis
que as manhãs se imponham, não há como impedir o resto do dia,
podemos muito pouco contra o fim da tarde ou contra o início da
noite. e o futuro é isto, começa já hoje, é o segundo
imediatamente a seguir a este. cada momento fresco e limpo é uma
possibilidade de renovação que a vida põe à nossa frente, podes
escolher isso ou o passado. eu escolho isso. não há nada pior que o
demasiado tarde e não há nada melhor que as biliões de
possibilidades que cada momento nos oferece de caminharmos para um
futuro nosso, aquele a que cada um tem direito. e isto pode ser
simples, pode ser tão simples como decidir, na improbabilidade do
trânsito, que chegou a hora de ter novos
cheiros na pele.
Era
o que eu sentia cada vez que passavas por mim! E adorava! Sentir o
teu cheiro cada vez que te mexias. Sentia um arrepio e o desejo
aumentava cada vez mais...
Mas
houve um dia que deixou de ter o mesmo efeito em mim! E a partir
desse dia eu soube que tinhas deixado de ser meu. Ou eu tinha deixado
de ser tua. Porque afinal, aquele olhar e aquele cheiro que me
deixavam KO, não passavam de um olhar vazio e de um odor que perdera
o encanto do antigamente.
E
a partir desse dia, voei! Fui para longe. Sentei-me na praia e fiquei
horas a observar o mar, a ouvir as gaivotas e a ver os barcos ao
fundo tão pertinho da linha do horizonte. Ganhei forças e
levantei-me para a minha nova vida. O Zé Manel sempre me tinha
olhado de uma forma diferente e achei que era altura de o encarar.
Aquele bigode, aquelas sobrancelhas fartas e másculas... As mãos
sujas de óleo e a barba por fazer. Alguma coisa no Zé Manel me
encantava e repugnava ao mesmo tempo! O telefone tocou, era a minha
mãe! Queria saber o que me apetecia para o jantar, mas eu só
pensava em ir ter com o Zé Manel... A última coisa que queria era
ter de aturar a minha irmã com as histórias dela, a minha avó a
ouvir a novela aos gritos e a minha mãe a fazer queixas do meu pai!
Queria pensar no Zé Manel. Ou estar com ele. Não sei... Queria
estar sozinha em silêncio... Peguei no carro e parei à frente da
oficina dele... Estava fechada mas vi uma
luz acesa lá dentro!
Não teria necessariamente de tomar uma
decisão, mas agora havia um sinal que permitiria fazê-lo.
Optou
por se encostar num longo suspiro e com convicção disse: “Tu vais
ser capaz.” Sentando o peso do seu corpo no chão, pousou os papéis
espalhando-os sem nexo, de lápis na mão esquerda (sempre daqueles
com borracha na ponta) e uma febre desconhecida dentro de si. Tudo
teria de se compor. Foi sempre assim que ouvira a sua Mãe dizer, que
só para a morte não se encontra remédio, de resto, para as nódoas
de alcatrão ou mesmo quando o altar da Nossa Senhora de Fora se
estatelou no chão no dia da procissão, haveria de se encontrar uma
solução.
Olhou
para a luz, permanecia constante e amarela. Com a mão direita
enrolava os cantos das folhas enquanto revia as últimas alterações.
A pouco e pouco o monte de papel ia ganhando corpo. Duzentas e trinta
e cinco páginas presas numa mola preta. A febre acalmava. Era afinal
a vontade de partilhar aquilo que fez afastar o seu corpo daquele
espaço, durante todo aquele tempo.
A
luz continuava acesa. Colocou o manuscrito no envelope, fechou-o com
fita-cola e enfiou-o na caixa do correio.
Com
o som metálico abafado que confirmou que batera no fundo da caixa,
veio a consciência de que não poderia voltar atrás. As pálpebras
fecharam-se com o peso do mundo distribuído irmãmente entre as
duas, a boca contraiu-se. Arrependeu-se. Arregaçou a manga, esticou
os dedos dentro da caixa e cá fora o braço, as pernas, enquanto
mordia a língua, ridícula, de lado, a apontar para o céu numa
prece. Mas nada nem ninguém no céu poderia agora fazer o tempo
andar para trás. Os olhos esbugalharam, a barriga deu a volta que
anunciava sarilhos para quem não estava perto de um posto de alívio
de tensão e, ainda em bicos dos pés, conformou-se num suspiro.
Agira num impulso e a sua racionalidade fustigava-lhe agora a
consciência. Deu meia volta e rumou a casa. Não foram necessários
mais do que duzentos metros para, de repente, tudo ficar claro como
água. Só
havia uma coisa a fazer:
procurar
ajuda junto da sua avó!
A avó
era aquela pessoa que a conhecia melhor que ninguém e que
identificava logo se o que ela precisava era de uns minutos de colo,
daqueles em que a ternura dos abraços diz mais que mil palavras, ou
de um bom conselho.
Sim,
de certeza que a avó saberia como ajudá-la!
Ao
volante do seu carro, conduziu até à casa onde crescera e que
tantas recordações lhe trazia.
Parou
o carro em frente à porta, saiu e por um momento ficou a admirar a
fachada daquela vivenda tão grande quanto antiga. O vento fazia
dançar as folhas das árvores e o espanta espíritos que estava na
entrada.
Tocou
à campainha. Do lado de dentro, ouviu os passos arrastados que se
aproximavam da porta.
Quando
finalmente a porta se abriu, os seus olhares cruzaram-se e, de
repente, só de olhar para aquela velha senhora, ela sentiu-se muito
mais leve. Tudo se havia de resolver!
Lembrou-se
que há muito não dedicava tempo a si própria e decidiu tomar um
longo banho, cheio de espuma, com um copo de vinho tinto e o livro
que ansiava acabar há mais de um mês. Por instantes esqueceu os
problemas, a empresa, o filho da mãe e as rotinas.
Quando
se deu conta já tinham passado quase 2h e por instantes sentiu-se
feliz!
Vestiu
uma roupa leve e sentou-se em frente ao computador a escrever a sua
história. Tudo se havia de resolver, mas tinham que saber a sua
versão. Ela não permitiria que os clientes ficassem com a ideia de
que a transacção não correra bem por sua culpa. Alguém tinha que
pôr fim à arrogância daquele filho da mãe e, nos dias de hoje,
não há jornalista que recuse uma boa história apimentada.
Mas,
bruscamente, parou de escrever. Estaria ela disposta a ver a sua vida
descortinada por uma cambada de jornalistas famintos?! Não seria um
preço demasiado alto? Mas que outra forma havia ela de arranjar para
conseguir que aquele cão milionário, dono de um império, pagasse
pelo seu despedimento injusto. A sua única prova era física.
No
entanto, sobre si pairava a dúvida sobre o que verdadeiramente era
uma prova. No seu caso, era evidente - uma camisa cheia de nódoas
que tanto podiam ser de ketchup, de sangue ou, pior ainda, daquela
compota de cereja que a sua tia insistia em oferecer-lhe. Tudo bem
que a tia era ceguinha, mas a tolerância para com parentes mais
desvalidos não deveria obrigar a enfardar compotas intragáveis.
Voltando
à sua única prova, resolveu tirar a camisa e examiná-la com
cuidado. Logo se arrependeu, porque quando se viaja num cacilheiro
apinhado não é difícil fazer amigos quando se tira a camisa. Ao
levantar a olhar, já um tipo com uma manga cava cor de rosa sorria,
tal como uma gaja duvidosa que ou tinha peruca ou trazia o seu gato
deitado em cima da cabeça. Reparou também na reacção mais
contida, um sorriso que era quase um esgar, de uma rapariga vestida
de negro que vinha a ouvir música nos seus phones modernos. Ela
parecia estar mais interessada na camisa, o que parecia contrariar a
tendência no cacilheiro.
Resolveu
voltar a vestir a camisa, aquela prova não provava nada e não era
nisso que se devia concentrar. Tinha era de perceber rapidamente
porque raio a rapariga de preto com os phones também tinha uma
tatuagem com um gnomo de jardim.
Anos
mais tarde chegou o arrependimento. Nada agora fazia sentido. A vida,
ou melhor, os anos de ausência encarregaram-se de atenuar o cheiro
da erva cortada, de fazer esquecer as promessas de amor que se
desenharam em cada folha da Ginkgo Biloba que enobrecia o lugar, de
abrandar o ritmo cardíaco que um dia foi acelerado sempre que se
adivinhava o encontro naquele jardim.
Hoje,
a erva permanecia cortada, a também chamada Nogueira do Japão
continuava a fazer a larga sombra que justificava que tantos
escolhessem aquele jardim e o gnomo, ao longe, que um dia ali foi
deixado num acto de puro humor (ou direi amor), ainda que mais
pálido, permanecia intacto, de pé.
Só
a expectativa de um amor infinito é que havia tombado. Com a queda
veio tudo atrás e nada restou, porque é difícil justificar o vazio
que nos preenche depois da traição de anos de certezas.
Desse
outro tempo, que só não era efectivamente passado porque as linhas
do gnomo marcadas na pele não o permitiam, só restava a tatuagem. E
nada doía tanto como viver num abraço contínuo a essas lembranças
que se queriam por esquecidas.
São
tantas as que me acompanham anos a fio que volta e meia dou por mim a
questionar-me: “onde está o baú para esquecer um pouco o
passado?”. É tramado. Pessoas. Essencialmente são as pessoas que
passam pelas nossas vidas e nos deixam estas tatuagens. E lugares e
palavras e sons e cheiros dos quais temos extrema dificuldade de
libertação. E com “pessoas” facilmente chego aos meus avós. A
tudo o que me ensinaram, às expressões que deles herdei e ainda
utilizo no meu dia-a-dia. E jeitos e manias e tiques. E um primeiro
namorado, aquele que julgámos ser para a vida. Quem não passou por
isso? E aqueles que outrora foram nossos amigos e sem sabermos
exactamente a razão, deixaram de o ser. Talvez porque a vida nos
afasta e nos magoa e trata de nos trazer amigos e pessoas novas e nos
tornar de novo felizes. Mas no fim de tudo, algures, há lembranças,
há pessoas, há lugares, há sons, há cheiros que não vamos
esquecer. Ou guardar. Porque fazem de nós o que somos. E nos fazem
sorrir. E sentir o calor no estomago. E o resto? "Aquele"
que nos agonia, esse pode ficar no baú. Tenho para mim que a
humanidade agradece.
E
eu também. Há muito tempo que não me sentia tão feliz. Ali
estivemos horas, juntos, em família. Os tios mais velhos, a quem
sempre me ensinaram a guardar o maior respeito; os primos da geração
anterior à nossa a fazer-nos as delícias com as suas histórias, as
mesmas de sempre, que todos já ouvimos uma e outra e outra vez e
nunca nos cansam; as primas da minha idade e os nossos filhos que
brincam e correm e pulam como nós também já brincámos e pulámos
e corremos.
Terminei
o dia de alma cheia. Matei saudades, dei abraços, deixei cair umas
lágrimas de emoção. Ver o meu filho integrado numa iniciativa tão
nobre, acompanhado de todas as pessoas que habitam o meu lado mais
sereno, foi mágico. Ali, naquele espaço e naquele momento, eu tive
a certeza que a História se repete. Eu soube que, independentemente
de tudo quanto nos possa assombrar, ele, tal como eu, vai ter sempre
no olhar aquela alegria de viver.
No
entanto, não pude deixar de sentir um aperto no peito quando, já de
madrugada, me deitei e pensei… Amanhã, estaremos de
volta à dura realidade…
no
fundo a única que realmente me pertence. Aqueles dias foram outra
coisa, tudo menos real. Foram um oásis no meio da minha vida
cinzenta e carrancuda, foram alma para quem tem um coração rugoso.
Aqueles dias foram dela! Ela que era feita de lábios rasgados e
gargalhadas, ela que tinha aquela pele morena de Agosto, o cabelo
preso numa trança meia desfeita e um vestido curto azul. E o olhar?
Aquele olhar maroto, infantil de quem não faz ideia do que custa a
vida. Convidou-me para dançar. como se nos conhecessemos desde
sempre e, no final da dança beijou-me! Sem me pedir, sem me avisar,
sem sequer me dar uma pista... Disse que a minha timidez a provocou,
que queria voltar a dançar comigo e que estaria na praia amanhã às
14h
Ela
falou a tarde inteira, sobre tudo, sobre o curso de Pintura que
estava a tirar e, sobre os seus planos de viajar e pintar o rosto de
cada país, sobre como gostava de praia e de águas frias! Mas quem é
que gosta de águas frias, pensei! só ela, e isso ainda lhe dava
mais encanto. Ela ria-se a cada frase e atropelava-se em assuntos.Não
sei se ouvi tudo que em disse, olhar para ela bloqueava-me a
capacidade dos restantes sentidos, mas lá ia acenando a cabeça de
longe a longe! Não me pareceu que isso lhe fizesse diferença...
fazia-me perguntas encadeadas umas nas outras e dava a opinião dela
sem sequer ouvir a minha... E nos entretantos beija-me outra vez! Tão
livre que ela era e eu tão preso a uma dura realidade... Nada
tínhamos a ver um com o outro e, a cada minuto me questionava o que
poderia querer de mim.
Não
a trouxe comigo, mas guardei em mim o calor de quem vive sem
preconceitos, sem máscaras. Trouxe o seu sabor a gelado de goiaba e
o seu cheiro a sal. E trouxe no peito aqueles olhos verdes, grandes e
com
tanta fome de mundo!
De
cheiros! De lugares! Estava a tornar-se insaciável!
Ficar
seria a opção mais cómoda mas isso seria contraproducente.
CALMA!
- Gritou-lhe a consciência em tom imperativo. Então deixou-se cair
na velha cadeira, de palhinhas coloridas. Agarrou o copo de café, já
frio, engoliu de um só gole saciando a sede. Pelo menos esta era bem
mais fácil de saciar.