O caso do miúdo de 12 anos que se atirou ao rio já desesperado com os ataques de que era vítima está finalmente a lançar a reflexão sobre uma prática cruel, que tem de ser agarrada de frente, como os cornos do touro.
Até agora tem-se falado da crueldade das crianças umas para com as outras, a falta de respeito pela diferença, a imposição aos outros daquilo que achamos que deve ser a norma. Já ouvi e li tantas vezes que "as crianças são cruéis" e de cada vez que ouço isto aperta-se-me qualquer coisa cá dentro. Não são as crianças que são cruéis, é o ser humano. As crianças simplesmente ainda não perceberam que essa crueldade tem de ser reprimida e não é aceitável porque provoca um sofrimento atroz nos outros. Há adultos que nunca chegam a perceber isto, por isso não me venham falar em crueldade infantil.
O bullying parte-me o coração não só quando chega ao limite do suicídio, porque isso é só o fim da linha de uma eternidade de sofrimento. De humilhação, de angústia, de silêncios, de vergonha, de noites mal dormidas e despertares sofridos porque se sabe o que está à espera. Porque o cabelo é assim, porque não se usa roupa de marca, porque tem o rabo grande, porque a mãe trabalha na praça, porque tem dificuldade em ler, porque é tímida, porque é bonita, porque é feia, porque sim, porque não, só porque alguém um dia decidiu que seria assim. Junta-se um grupo, invariavelmente com um líder com necessidade de afirmação que conseguiu convencer uns quantos tristes com fraca personalidade de que era isto que devia acontecer e começa o pesadelo. E os dias passam e tudo se repete. E ninguém se impõe ou impede o achincalhamento porque sabe que se o fizesse seria a próxima vítima, porque não era fixe.
Nos últimos dias tenho revivido vezes sem conta as vezes que assisti a situações destas. Tirando uma outra vez pouco significativa, estive quase sempre do lado dos maus, ou mais concretamente, do lado dos que assistiam, riam e não faziam nada. Mesmo quando cá dentro o coração se torcia.
Tenho pensado no Hugo do jardim de infância, maior do que os outros meninos, estranhamente grande, sempre calado, sempre sozinho junto aos muros da escola, com um olhar parado que eu não sabia identificar na altura. Diferente. Lembro-me de lhe enchermos o bolso do bibe com terra dos canteiros e bichos da conta, de lhe chamarmos nomes, de o empurrarmos, de gozarmos com o ranho que escorria constantemente do nariz. E o Hugo sempre sozinho, sempre, sempre, todos os dias com a cabeça encostada ao muro da escola à espera que viessem gozar com ele. Lembras-te dele, Filipa?
Tenho pensado no Francisco, já no liceu. Os pais achavam que a melhor forma de o Francisco ser feliz era integrá-lo numa escola normal, com aulas normais, rodeado de adolescentes normais. Mas o Francisco era deficiente mental. Tinha 15 anos e não sabia fazer contas, babava-se, não sabia falar, quanto mais ler. E os adolescentes que os pais achavam que o iam ajudar a fazer sentir normal passavam as aulas a gozar com ele, a chamá-lo atrasado, monga, estúpido. Atiravam papeis, tiravam-lhe a cadeira. E riam, riam, riam. E eu torcia-me por dentro mas ria também.
E hoje li a
história do professor que se suicidou, também ele vítima de bullying, e pensei na Etelvina que nós deixámos muito perto da loucura, das lágrimas e do desespero. Lembrei-me da Gilberta e das aulas onde voavam bombinhas de mau cheiro, cadeiras pela janela, onde se gritava muito, muito, inclusivamente com ela. Tinha tanta piada aquele enxovalhanço, aqueles insultos. Havia sempre possibilidade de ir um bocadinho mais longe, era só uma questão de ter imaginação. A última vez que soube dela tinha sido recambiada para a biblioteca da escola, porque não estava em estado de dar aulas.
Sei que sempre fui ensinada a respeitar e a ajudar os outros, por isso custa-me ainda mais aceitar que tenha pactuado com estes comportamentos, que tenha contribuído de uma forma tão leviana para o sofrimento de alguém. O papel dos pais é fundamental, mas não chega porque eu sei que os meus fizeram um bom trabalho. Estamos a falar de pessoas que estão a crescer, particularmente influenciáveis, que muitas vezes sofrem da síndrome da imortalidade, que se acham capaz de tudo sem pensar nas consequências. O papel dos professores têm de ir além de debitar matéria, têm de ser educadores também. Têm eles também de receber apoio e orientação da escola, seja de professores mais experientes, de psicólogos, de associações de pais. Têm de haver comunicação entre todos e um trabalho conjunto. Nunca há só um culpado. A responsabilização não pode acontecer de forma isolada. E depois? E antes? E os outros que virão a seguir? Ontem a ministra da educação falava na expulsão imediata dos responsáveis por bullying. E depois? O que é que acontece a uma criança expulsa da escola por comportamentos destes? Que adulto vai ser? E os que lá ficam? Os próximos? Esta para mim vai ser a grande prova de fogo da ministra. Saber aproveitar estas tragédias para lançar uma reflexão importante que pode ser a rampa de lançamento para criar uma estrutura de apoio nas escolas que permita prevenir este drama. Prevenir. Porque nunca vai desaparecer. Porque o ser humano é cruel, não as crianças.